sexta-feira, dezembro 18, 2009


«O que distingue o homem são de um alienado,
é precisamente que o homem são tem todas as doenças mentais,
 e que o alienado tem apenas uma!»
- Robert Musil

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Excerto do livro «Helping someone you love recover from BPD» de Tami Green

Porque nos vamos embora

Familiares e amigos que ajudei, perguntaram-me porque as pessoas que eles amam os abandonaram e depois voltaram, vez após vez. Eu explico que, para realmente entender o que acontece com alguém que tem TPB, é necessário primeiro entender a forma intensa como as tempestades emocionais afectam tudo no «nosso mundo». Aqueles que têm TPB não têm «pele emocional». Muitos comentários ou observações aparentemente benignos da parte dos nossos entes queridos acerca de nós, são sentidos como um ataque. Criticas «construtivas» são sentidas numa escala de ataque. Um sistema nervoso saudável inicia uma luta ou resposta quando se sente ameaçado por um perigo. Quem tem TPB sente-se «à beira do perigo» em todos os momentos. Assim, entramos em luta ou resposta muito facilmente, especialmente quando criticados.

Visto que as relações próximas trazem um maior grau de interacção e de sofrimento, quem tem TPB muitas vezes culpa a outra pessoa pela sua angustia. Quando não compreendemos o porquê do sofrimento faz sentido atribuir a causa dessa dor à pessoa que convive conosco. Com o tempo e a compreensão percebemos que o nosso sofrimento não pode ser causado por uma pessoa, ou pelas suas palavras e acções, mas pode ser resultado de uma doença que é curável.

No entanto, só porque é curável, não significa que a cura seja rápida e fácil. Talvez tenha passado anos e gasto milhares de dólares em terapeutas para si, ou para o seu ente querido. Por vezes, para desespero dos entes queridos, leva anos para percebermos que pode existir um problema que simplesmente não se vai embora com uma mudança de cenário ou de elenco. (...)

Porque as criticas magoam tanto

Porquê a critica, mesmo quando entendida, magoa tanto? A resposta instintiva do Ego é guardar-se da critica  Qualquer pessoa que se sinta atacada, pode sentir-se na defensiva e pode defender-se. Quem tem TPB, tem um senso de si próprio muito sensível. Quando esse senso é desafiado, podem sentir que «podem quebrar-se» e deixar de existir. Quando combinado com uma resposta emocional intensa a todas as criticas, o resultado é, geralmente, uma reacção imediata, seja para evitar a dor do «ataque» , por fugir a ele o mais rápido possivel, ou por defender-se dele em contra-ataque.

Alguns que têm TPB não reagem por exteriorizar ou atacar outros. Eles agem no seu interior, por transformar a sua raiva. A sua resposta dá-se com a auto-mutilação ou disturbios alimentares. Falei com alguns que se fizeram passar por fome numa tentativa de gerir os sintomas do transtorno ou de modo a deitar fora a auto-aversão.Há também aqueles de nós que auto-mutilaram profundamente o suficiente, que causaram danos permanentes a si próprios e que requerem múltiplas cirurgias corretivas.

Assim, a pergunta permanece - o que causa esta condição? Como explica a teoria, um frágil senso de si próprio, tal como os outros sintomas que vêm do desenvolvimento do transtorno, existem devido à combinação de duas coisas: um temperamento sensível e um ambiente (viciado) que invalida o sujeito.
No processo de crescimento, quem possui um temperamento muito sensível, a resposta emocional  a qualquer estimulo dado é muito maior do que aconteceria numa pessoa dita «normal». Isto nem sempre é uma coisa má: na verdade, aqueles que têm um temperamento sensível, são pessoas frequentemente muito mais empáticas e criativas. Eles podem tornar-se grandes humanitários, terapeutas, reformadores e artistas, por exemplo. Alguns possuem qualidades que parecem boas demais para esta terra, e são muito mais abertos a experiências espirituais.

Em alguns casos, os pais entendem que estas crianças são de facto, especiais, e que devem ser estimuladas de um modo diferente. Nestes casos, quem tem um temperamento sensivel pode ser capaz, desde a mais tenra idade, de desenvolver-se em todo o seu potencial. Mas a sociedade tenta geralmente endurecer aqueles que têm um temperamento sensível. Como criança, todas as minhas emoções eram intensas. Lembro-me de estar deitada no chão, chorando, enquanto ouvia as notas de uma sinfonia no leitor de cassetes.

A maioria de nós fez o nosso melhor para esconder a sua extrema sensibilidade, dos nossos cuidadores. Os meus sentimentos sempre foram mais facilmente magoados, do que os outros. Muitos de nós sentiram-se constantemente incompreendidos e negligenciados. Na escola, optavamos por nos sentarmos sózinhos para almoçar, visto que era dificil estarmos com outras crianças. Alguns aprenderam que a única maneira de lhes prestarem atenção era por darem respostas fortes, de uma forma dramática. Em crianças com TPB, estas não são apenas formas de tentarem ser perturbadores ou de causar destruição. Estas crianças têm uma necessidade profunda de serem compreendidas e validadas. Se o forem, então, florescerão.

Explicado o profundo vazio

A sabedoria convencional diz que os cuidadores devem responder com firmeza às crianças. É dito às crianças altamente sensiveis para «se deixarem de coisas» e para «superarem isso». Infelizmente, isso invalida a pessoa até o seu nucleo. O efeito é que é «puxado o tapete» de debaixo delas. Como criança sensivel e profundos sentimentos, se lhes é dito que não podem ser assim, então a mensagem que estas recebem é que não podem ser elas mesmas. Então, se não podem ser elas mesmas, o que lhes resta? Praticamente nada. Resta apenas o vazio.

Quem tem TPB gasta a sua vida tentando agarrar-se ao que são, enquanto os outros os negam. Eles aprendem que não podem confiar nas suas próprias experiências, pensamentos, sentimentos, visto que lhes foi dito vez após vez que eles estavam errados. Na altura que entram na adolescência, ou inicio da idade adulta, estas pessoas são tão desgastadas e emocionalmente feridas que já não são capazes de esconder a sua sensibilidade. Eles não conseguem esconder por muito tempo os sintomas. Assim, as outras pessoas começam a ver o comportamento e os sintomas do TPB, que realmente se começa a manifestar.

Para nós, o primeiro passo para a recuperação é reconhecer e gerir os comportamentos que tomamos para nos protegermos e para lidar com a vida. À medida que continua,  torna-se um enorme alivio não experimentar tais emoções intensas todo o tempo. Mas o vazio ainda precisa de ser preenchido, e o senso de si próprio ainda deve ser reforçado. Isto leva tempo e muito trabalho. Mas também é um trabalho gratificante e por vezes, divertido. È quando nos redescobrimos a nós próprios,  de relaxar em quem somos, de estabelecer limites e de nos sentirmos livres para sermos nós próprios, talvez, pela primeira vez na vida.

Imagem de si próprio

Um sintoma importante do TPB, é um senso de si próprio instável. Não temos certezas nenhumas de quem somos e se podemos confiar no nosso mecanismo interno de resolução de problemas. Encontramo-nos em situações que não queremos, mas sentimo-nos impotentes de modo a dar-lhe um fim.

Novamente, esta instabilidade é dificil perceber, a menos que tenha experimentado. Imagine que os seus pensamentos, percepções, valores, ideais e formas de resolver problemas mudando dentro de si constantemente, de situação para situação. È como se fosse um astronauta flutuando no espaço, sem rumo, sempre tentando agarrar a ponta de uma corda da realidade. Temos tendencia a ser reactivos, a tomar decisões em cima do joelho, geralmente baseadas no nosso humor instável. Outras vezes definimonos através da adoção e descarte de um «sistema» de crenças, tais como as encontradas em religiões ou em grupos de auto-ajuda. Muitas vezes, nós imitamos os ideiais e os hábitos dos outros, procurando uma «auto-imagem» em que possamos caber. Isto normalmente não é feito a um nível consciente. Nós somos altamente susceptiveis à aprovação e julgamento de outros. Por outro lado, vivemos com medo de reprovação da parte daqueles que amamos. Acreditamos que é normal vivermos assim a vida, porque sempre a vivemos assim.

O senso de si mesmo instável,  sentimentos de vazio, e tentativas frenéticas para evitar o abandono, controlam os nossos relacionamentos e moldam as nossas experiências de vida. Considere o bebé que sente ter uma identidade em comum com a sua mãe. Quando a mãe está por perto, o bebé está calmo e contente, olha para a mãe, brinca com os seus brinquedos, ri-se e pratica a sua fala. Quando a mãe está fora do alcance da sua vista, como desaparecendo ao virar da esquina, o bebé rapidamente torna-se agitado e muito triste, e cedo começa a chorar desesperadamente pela mãe.

Esta ansiedade atormenta a vida de uma pessoa com TPB. Você achega-se a alguém. Mal deixam a sua vista, e você rapidamente se sente angustiado, como se estivesse apartado do mundo inteiro. Tudo o que é significativo foi-se embora, e você se sente completamente vazio e sózinho. O que na verdade é uma ausência razoável e temporária, você o sente como um abandono completo e total. Nenhuma garantia do contrário parece diminuir os sentimentos angustiantes. Nós não conseguimos recordar dos sentimentos de amor ou conexão. È por isto que, uma vez separados, nós podemos mandar-lhe mensagens de um modo frenético, ou mandar-lhe um email, ou telefonar-lhe. Estamos a tentar reconectar consigo - para nos tranquilizarmos e termos certezas de novo.

Dada essa necessidade intensa de reconexão, porque ficamos tão irritados tão rapidamente com o objecto do nosso afecto? O nosso senso de si próprio é tão frágil, e tão facilmente ameaçado. Embora sintamos um medo profundo de abandono, criticas reais e percebidas são igualmente desoladoras. Nós tentaremos, a todo o custo, defender-nos a nós próprios, independentemente das consequências, porque percebemos que o custo de não nos defendermos  é a aniquilação total do nosso «Eu».

Enquanto que precisamos que os outros nos definam, também precisamos de constante validação. Se puxarem demasiado por nós, embora pareça que não o tenham feito, nós sentimos uma dor enorme, até parecendo que podemos morrer dessa dor excruciante. E essa dor não é apenas medo, é uma dor real. Nós geralmente experienciamos dor emocional a um nível que a maioria dos humanos nem imagina.

Uma grande parte do trabalho de recuperação passa por defenir um senso de si próprio «autentico» e descobrir formas saudáveis de fazer com que as nossas necessidades sejam atendidas. Ao longo do tempo, nós aprendemos como e quando fazer valer as nossas necessidades e as formas adequadas de cuidar de nós mesmos.

Para nosso grande alívio, nós deixamos de nos sentir tão carentes todo o tempo. A vergonha que chegamos a sentir é substituida por uma confiança crescente. Aprendemos também a validar os nossos sentimentos, pensamentos, ideais, e paramos de nos culpar a nós mesmos e aqueles que amamos, nos desafios e decepções inevitáveis da vida. (...)


quinta-feira, dezembro 03, 2009

Alvaro de Campos - Excerto de Esta Velha Angústia





«O grito»
Edward Munch








«Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


(...)»

16 - 6 - 1934
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002